Leonardo Araújo
No último Dezembro (2023) completaram 120 anos de nascimento de Yasujiro Ozu, que faleceu em 1963, na mesma data de seu nascimento (12/12). No documentário Conversando com Ozu, realizado em 1993 por Kogi Tanaka, em memória dos 90 anos do cineasta japonês, Aki Kaurismäki participa como um dos cineastas admiradores dessa obra que contabiliza mais de 50 longas-metragens. Ele aparece em uma fábrica, de frente para uma foto de Ozu, sentado ao lado de uma cafeteira vermelha, associada pelas imagens e pelas palavras a uma chaleira vermelha que Kaurismaki parece obcecado após ter visto-a em filmes de Ozu. Ele ressalta no cineasta japonês a capacidade de ir à essência da vida humana sem necessitar do recurso da violência. Ele atribui a Ozu a razão de seu abandono da pretensão de ter uma carreira literária, após assistir, em 1976, Era uma vez em Tóquio (1953) e decidir fazer filmes até o fim da vida, para provar a ele mesmo que nunca chegará ao nível do seu mestre.
Em sua participação, Kaurismäki declara que escolheu ser filmado numa fábrica velha por ser um homem que tende a olhar para o passado, acreditando que que Ozu possuía tendência similar. O cineasta finlandês também prenuncia que no seu túmulo estará escrito o título de um dos filmes de Ozu: ''Eu nasci, mas...''. A importância do passado parece ainda mais ressaltada com o último filme de Kaurismäki, na medida em que é possível ver a mesma forma e os mesmos temas dos anos 80, quando iniciara sua carreira. Essa repetição sistemática – uma herança ozuniana incontestável – se nota mesmo nos detalhes cotidianos do enredo. Folhas de outono não teria um de seus motes narrativos principais se os personagens usassem celulares.
Não me parece, no entanto, que a relação com o passado seja a mesma de Ozu, sobretudo como Kaurismäki a descreve. Obviamente Ozu tem em mente as tradições culturais japonesas, mas sempre esteve muito atento a seu presente, não travado no passado, mas se propondo a pensar a passagem do tempo. Contudo, não é essa ideia que se nota em títulos do diretor de filmes como Nuvens passageiras, Sombras no paraíso e Folhas de outono, impregnados da noção de fugacidade?
É curioso o destaque que Kaurismäki dá para ausência de violência no cinema de Ozu, sendo este um ponto fácil de encontrar em outros autores, e sendo esse talvez o traço contido em Kaurismäki que menos lembra Ozu, pois se aquele não chega a fazer dela um espetáculo, não a omite completamente, o embate físico e o sangue se apresentam nesses filmes, sobretudo no mundo masculino.
O ponto que parece mais comum em relação a Ozu, desprendido dos parágrafos anteriores, é a ideia de manutenção da forma: a repetição. Nisto Kaurismäki parece um verdadeiro herdeiro de Ozu, na repetição temática e formal que produzem filmes muito parecidos, sem se esgotarem. Da forma, destacam-se as atuações contidas, tendendo a desdramatização, ainda mais mecânicas que em Ozu, talvez tendendo mais para Robert Bresson, companheiro do cineasta japonês no que tange ao chamado estilo transcendental (conforme Paul Schrader[i]). Outra questão é o ritmo, que permanece no mesmo tom ao longo dos filmes - esse ponto em que Deleuze discordará de Schrader a respeito de Ozu [ii] - o de que não há distinção entre tempo forte e fraco - parece ser o caso em Kaurismäki: filmes que se dispõe aos nossos olhos e ouvidos sem variações bruscas. Essa parece ser uma forma de tratar do tema mais caro a esses dois diretores: o cotidiano das pessoas comuns, que vivem a vida com pequenos conflitos, com breves conquistas e constantes derrotas, seguidas de tristes olhares ou singelos sorrisos diante das banalidades e fatalidades da vida.
Mas quando Kaurismäki diz que escolheu um lugar antigo para falar de Ozu, revela outro elemento de seu próprio cinema, no fato de que esse lugar antigo é uma fábrica. O cotidiano filmado por Kaurismäki frequentemente é do proletariado. Seus pequenos conflitos são movidos pela falta de dinheiro, sua apatia parece se confundir com a frieza de trabalhadores e trabalhadoras que buscam um autocongelamento como modo de se anestesiar diante da prisão do mundo do trabalho, diante do tédio imposto por uma vida que rouba o tempo e deixa algumas horas a noite a serem consumidas com um jantar diante da TV ou do rádio velhos, e nos fins de semana - um bar, em que ocorrem os encontros, onde o espaço para Eros irrompe no meio da civilização.
Talvez a ênfase ao mundo do trabalho se apresentasse como a característica marcante de Aki que mais se distanciasse de Yasujiro. Mas seria um erro pensar assim. É o próprio Ozu quem se reconhece como um diretor do “gênero sobre assalariados''[iii] começando por Vida de assalariado, filme perdido de 1929. É certo que no pós-guerra Ozu parece se dedicar mais propriamente à família de classe média, mas o dinheiro permanece como questão. É sobre um filme dessa última fase que Ozu descreve um procedimento que é identificado a seu cinema de modo geral: a repetição desdramatizada do cotidiano. Mas trata-se de uma passagem focada na vida do trabalhador, quando afirma sobre Começo de primavera (1956): '' eu tentei retratar o phátos da vida de um assalariado em uma sociedade submetida à transformação. Eu tentei evitar tudo que fosse dramático, empilhando cenas onde nada acontecia, assim a plateia sentiria a tristeza dessa existência''.[iv]
Ozu estende a importância do trabalho em sua arte ao se considerar, enquanto artista, antes de tudo um trabalhador. Por isso ao falar de seu fazer cinematográfico, se comparou a um fabricante de tofu[v], que toda manhã se levanta para executar a mesma tarefa, com os mesmos objetivos e dedicação, se aprimorando a cada dia.
Kaurismäki poderia se apropriar das duas citações anteriores, com seu rigor e método que parece se repetir a cada filme. É perceptível no cinema do finlandês que mesmo com o efeito da repetição formal na repetição temática, quando se trata de seus enredos, não estão barrados os pequenos prazeres da vida, como fumar um cigarro ou assistir um show de rock, mas também o é com Ozu, em tomar uma dose de saquê ou saborear o aroma do chá verde sobre o arroz. Em ambos os cinemas, a repetição é ambígua. Em sentido mecânico, pode ser vista como parte de um cotidiano fastidioso. Mas a repetição formal, aliada ao minimalismo, possibilita a atenção aos detalhes, a força dos gestos mínimos, como um sorriso ambíguo de Setsuko Hara ou variações de olhar de Kati Outinen, fornecendo breves variações afetivas nas narrativas.
Poder-se-ia dizer também que Kaurismäki tende mais para a comédia. Isso se evidencia em Folhas de outono, uma de suas obras mais divertidas. Mas Ozu também soube produzir comédias, das quais eu poderia destacar aquela que leva um título também ligado precisamente ao último filme de Kaurismaki: Dias de outono.
Mas pensar que Kaurismäki apenas reproduz Ozu não faz o menor sentido a qualquer percepção sensível que se coloque diante das duas obras. Até o momento do presente texto quis apenas destacar pontos de contato nem sempre detectados, seguindo o rastro deixado pela reverência de um ao outro, ao declarar que seus filmes seguem os passos inalcançáveis do diretor de Pai e filha.
Pensando propriamente em Kaurismäki, penso em dois traços singulares que compõem a identidade de seu estilo : a) submeter a série de elementos citados (o ritmo, o tempo, a repetição, o trabalho, a desdramatização, o humor, o cotidiano) ao âmbito do absurdo - tudo parece se encontrar nessa esquisitice que não caminha para o surreal, mas para dentro do que nos é mais familiar, e daí brote um sorriso que mistura identificação e estranhamento; b) a apropriação do contexto geográfico: adentramos no clima frio finlandês, que se harmoniza com os gestos mecânicos e o sentimento de vazio (que no zen de Ozu, se confunde mais com a plenitude). Por vezes o ar gelado parece emoldurar a melancolia e as frustrações da classe trabalhadora.
Em Kaurismäki, o que muitas vezes descongela a imagem é o aparecimento do vermelho, talvez mais presente em seu último longa. Mais pontual em Ozu, mas constante nos filmes coloridos. É a chaleira vermelha que Kaurismäki diz procurar incansavelmente. O calor do chá quente de Ozu, no cinema do finlandês, vem com a fagulha de acalanto nas relações humanas, no amor e na amizade, no companheirismo afetivo que faz-se desvelar a solidariedade de classe, impedindo a morte completa da esperança, permitindo vislumbrar no horizonte a possibilidade de futuros menos sombrios.
[i] SCHRADER, Paul. Transcendental style in film: Ozu, Bresson, Dreyer. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1988.
[ii] DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p.24.
[iii] Ozu sobre Vida de assalariado. In: Emoção e Poesia: o cinema de Yasujiro Ozu. Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p.29.
[iv] Ozu sobre Começo de Primavera. Emoção e Poesia: o cinema de Yasujiro Ozu. Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p.137.
[v] YOSHIDA, Kiju. O anticinema de Yasujiro Ozu. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 33.